Autor(a): Bianca Leal
A humanidade já encarou centenas de doenças, especialmente de caráter infeccioso, que trouxeram e expuseram grandes problemas sociais, econômicos e políticos. Mas como uma doença deixa de ser uma epidemia para estar erradicada em todo o mundo?
O caso da varíola
A varíola – doença infecto-contagiosa causada pelo vírus Orthopoxvirus variolae – acompanhou a humanidade por séculos. O quadro clínico era marcado, inicialmente, por febre alta, dor de cabeça e nas costas e abatimento, seguido pelo abaixamento da febre com aparecimento de erupções avermelhadas, que evoluíam 1 para pústulas.
Tentativas de imunização já eram realizadas pelos povos orientais há mais de 1.000 anos, em um processo chamado de variolação. Nele eram administrados a pessoas saudáveis raspados de pústulas de pacientes acometidos pelo vírus. Não era um método muito eficiente, visto que muitas pessoas adoeciam e faleciam pelo desencadeamento da doença ou de outras infecções.
É no século XVIII, contudo, que temos um marco histórico da Imunologia protagonizado pela imunização contra a varíola. Edward Jenner, em 1796, após observar que ordenhadeiras de vacas em contato com a forma bovina da varíola eram imunes ou apresentavam quadros brandos de varíola, cogitou a possibilidade de utilizar o material desta doença para imunizar a população. E assim o fez, obtendo resultados satisfatórios (embora comitê de ética nenhum teria aprovado sua experimentação atualmente!).
Jenner estava muito correto ao acreditar que a versão bovina da varíola seria capaz de imunizar contra a versão humana, tanto que as formulações vacinais desenvolvidas a partir de então utilizam o vírus bovino.
Um momento marcante na história brasileira, no início do século XX, também envolve o combate à varíola, embora em um cenário sociopolítico mais conturbado. A Revolta da Vacina compreendeu em 5 dias de manifestação contra a lei que regulamentava a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola na cidade do Rio de Janeiro. Embora se possa pensar que a revolta foi um reflexo do negacionismo científico por parte da população, é preciso ressaltar que as condições em que mandatória para a vacina foi estabelecida não eram favoráveis. O Brasil do início do século XX, com uma República recém-instituída, uma população não instruída e forças políticas querendo tirar proveito da vulnerabilidade social, era o cenário da revolta que foi além de uma questão de saúde e tornou-se uma manifestação sociopolítica.
Já em 1959, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou a sua primeira tentativa de campanha para erradicação da varíola. Contudo os esforços não surtiram efeito porque não havia vacinas para tornar o objetivo possível.
A campanha de erradicação
A fim de enfim conter esta doença que apenas no século XX havia matado 300 milhões de pessoas, a OMS reorganizou e lançou em 1967 um conjunto de ações, programas e medidas de combate à varíola.
O principal foco da campanha era a vacinação, única forma de conter a disseminação ou o agravamento da doença. Foram 300 milhões de dólares investidos na época para a erradicação, que precisava incluir todas as nações mundiais.
Haviam muitas dificuldades relacionadas com a efetividade do programa de imunização em todo o mundo, particularmente em regiões pouco desenvolvidas. Uma delas era a necessidade de refrigeração das vacinas no transporte e no armazenamento, visto que o uso de refrigeradores era bastante restrito entre as décadas de 50 e 60. Outra limitação era o método de aplicação utilizado: por multipressão2.
A situação começou a mudar quando foi possível liofilizar3 a vacina, facilitando o transporte e resolvendo a questão de armazenamento, e utilizar uma agulha bifurcada para a administração das doses.
Os resultados da vacinação apareceram com o tempo. No início da década de 70, o Brasil, graças aos esforços da Fiocruz na produção, distribuição e aplicação dos imunizantes, havia erradicado a varíola do território nacional. Em 26 de outubro de 1977 foi registrado na Somália o último caso de varíola transmitida naturalmente, e em 11 de agosto de 1978 foi registrado um caso em Londres por contração da doença através dos tubos de ventilação próximos a um laboratório que manipulava o vírus.
Então, em 8 de maio de 1980, a 33a Assembleia Mundial da Saúde declarou que “O mundo e todos os seus povos estão livres da varíola.”
Os avanços científicos e sociais
A campanha de erradicação da varíola foi um marco do sucesso de medidas de saúde pública aliadas a avanços técnico-científicos. Seus moldes inspiraram outras campanhas, como a de combate à poliomielite no Brasil (doença erradicada nacionalmente em 1989), e salvaram milhões de vidas.
Os conhecimentos angariados antes, durante e após a eliminação mundial da doença, a respeito do Orthopoxvirus variolae e de outros vírus da família, permitiram uma compreensão mais rápida e assertiva de como combater e formular vacinas para a varíola dos macacos (monkeypox), por exemplo.
A maior lição, contudo, a se tirar deste episódio provavelmente é sobre a importância e o impacto da vacinação em controlar, conter e erradicar doenças. Pudemos observar recentemente a redução do número de casos e mortes por COVID-19 com o início da vacinação – uma evidência positiva de sua eficiência – e o risco iminente de reintrodução de doenças antes erradicadas, como a poliomielite, por redução da cobertura vacinal no país.
Assim, fica claro que, a fim de erradicarmos doenças infecto-contagiosas, é preciso investimento e compromisso com medidas profiláticas, contando com a adesão governamental, científica e popular à causa.
1 A palavra ‘evoluir’ aqui equivale à continuidade do processo natural da infecção, e não melhora.
2 A aplicação por multipressão incluía a deposição de uma gota da vacina sobre a pele do paciente seguida de 20 a 30 pressões sucessivas com uma agulha através da gota, a fim de romper a camada mais superior da epiderme e permitir a entrada do material no corpo.
3 A liofilização é o processo de remoção da água de uma substância.
REFERÊNCIAS
Gordis, L. Epidemiologia; quarta edição. Rio de Janeiro: Revinter, 2009.
Departamento Nacional da Criança. Vacinações Preventivas. Rio de Janeiro, 1963. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vacinacoes_preventivas_2_ed.pdf. Acesso em: 26/10/2022.
Organização Pan-Americana de Saúde. Erradicação da varíola: um legado de esperança para COVID-19 e outras doenças. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/8-5-2020-erradicacao-da-variola-um-legado-esperanca-para-covid-19-e-outras-doencas. Acesso em: 21/09/2022.
Portal Fiocruz. Cinco dias de fúria: Revolta da Vacina envolveu muito mais do que insatisfação com a vacinação. Disponível em: .https://portal.fiocruz.br/noticia/cinco-dias-de-furia-revolta-da-vacina-envolveu-muito-mais-do-que-insatisfacao-com-vacinacao. Acesso em 22/09/2022.
Revista de Manguinhos. Os Últimos Dias da Varíola. Revista de Manguinhos, n. 8, 2005.