Como uma bactéria permitiu o diagnóstico da COVID-19?

Autor(a): Bianca Leal

Desde Março de 2020 estamos vivendo a pandemia do vírus SARS-COV-2, coronavírus responsável por uma síndrome respiratória aguda grave que levou a óbito mais de 6 milhões de pessoas. Neste cenário pandêmico, fez-se necessário o uso de tecnologias diagnósticas e, mais adiante, de vacinas para a vigilância, a identificação e o controle da doença.

Tratando de diagnóstico ficamos familiarizados com os testes disponíveis, dentre eles o RT-qPCR – padrão ouro para diagnóstico da COVID-19. A informação sobre o funcionamento da técnica, amplificando o material genético viral a partir de amostras do sítio de infecção, foi muito difundida a fim de trazer conhecimento e segurança aos usuários que precisavam desta testagem. Certamente não era prioridade tratar sobre um pouco da história à época, mas por que não entendermos como esse método de amplificação de material genético, a polymerase chain reaction (PCR), foi desenvolvido?

RETOMANDO AOS PRINCÍPIOS

A síntese de DNA é um processo natural dos seres vivos, permitindo a multiplicação de suas células e a manutenção do seu conteúdo genético em todas elas. Trata-se de um mecanismo semiconservativo em que, a partir de uma molécula de DNA surgem duas novas duplas-fitas, sendo uma fita da molécula original. Isso garante que haja sempre um molde para a síntese da nova fita.

Para amplificar esse DNA é necessário que as duas fitas originais se separem, abrindo espaço para o pareamento dos iniciadores (primers) e a ação da enzima DNA polimerase na incorporação dos nucleotídeos correspondentes para síntese da nova fita.

Esquema da replicação do DNA (OpenStax)

Reproduzir isso em laboratório seria muito útil, mas até a década de 80 isso não era possível porque para separar as duas fitas originais – processo chamado de desnaturação – fora de um sistema biológico é necessário aquecer o material a temperaturas acima de 56°C. Contudo, as enzimas de forma geral também desnaturam em temperaturas elevadas, levando à inativação da DNA polimerase responsável pela síntese da nossa nova fita. A solução para esse problema seria encontrar uma polimerase resistente a temperaturas extremas. 

DIRETO DA FONTE

Embora a técnica PCR tenha sido desenvolvida na década de 80, com o cientista Kary Mullis recebendo o Prêmio Nobel de Química em 1993 pelo feito, a história para sua invenção começa na década de 60, em Yellowstone, Estados Unidos.  

No ano de 1966, o pesquisador Thomas Brock e seu estudante Hudson Freeze, investigando a vida nas fontes termais do Parque Nacional de Yellowstone, identificaram e cultivaram uma bactéria encontrada a cerca de 72°C. Sua temperatura ótima de funcionamento estava justamente próxima dos 70°C, mas suas enzimas eram capazes de suportar temperaturas que chegavam próximas à temperatura de ebulição (92,5°C na altitude de Yellowstone). 

Parque Nacional de Yellowstone, Wyoming, EUA (James St. John, Newark, Ohio)

À época, a T. aquaticus era o organismo mais termófilo conhecido (hoje esse posto pertence à bactéria Methanopyrus kandleri, mas essa é outra história) e não formava esporos 1 – formas inativas de resistência ambiental de bactérias -, o que apontava para um novo gênero de bactérias, que ele chamou de Thermus. A bactéria Thermus aquaticus, resistente a uma condição extrema de temperatura, abriu portas para os cientistas estudarem como ela era capaz de sobreviver em tão intensa temperatura.

Assim, para além de todos os mecanismos de sobrevivência deste extremófilo, foram capazes de identificar sua DNA polimerase resistente ao calor e a chamaram de Taq polimerase. Esse conhecimento, inserido na década de 80, permitiu solucionar o problema inicial do aquecimento das DNA polimerases convencionais a mais de 56°C.

DA ACADEMIA À CIÊNCIA FORENSE

Com a técnica e os recursos necessários em mãos, profissionais do mundo inteiro passaram a se aproveitar da amplificação do material genético. É de se esperar que um conhecimento destes não ficaria restrito ao universo da pesquisa científica, e não ficou.

O uso da PCR no ambiente acadêmico tornou-se comum em laboratórios de biologia molecular, permitindo a amplificação da matéria-prima para sequenciamento genômico e edição gênica. Em laboratórios diagnósticos, a PCR e suas adaptações (RT-PCR, RT-qPCR) abriram portas para um diagnóstico sensível e específico de doenças virais e genéticas. Na perícia criminal, a amplificação do material genético encontrado em cenas de crime auxiliou na identificação de responsáveis e solução de casos.

De fato, a invenção da técnica PCR é uma clara evidência de como a ciência básica contribui substancialmente com os avanços da ciência aplicada. E então foi assim que uma bactéria extremófila, a Thermus aquaticus de uma fonte termal nos Estados Unidos, permitiu o diagnóstico da COVID-19 na década de 2020.

1 Esporos são formas inativas de resistência ambiental de bactérias.

REFERÊNCIAS

BBC Brasil. A descoberta nas fontes termais de Yellowstone, nos EUA, que se tornou chave para os testes da covid-19. Disponível em:  https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52539425. Acesso em: 17/09/2022.

Brock, T. D. The value of basic research: discovery of Thermus aquaticus and other extreme thermophiles. Genetics, v. 146, n. 4, p. 1207-1210, 1997. https://www.doi.org/10.1093/genetics/146.4.1207.

Bianca Leal
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